Novos dados vão atrasar ou até impedir a vacina
Formas mais graves da infeção são provocadas pelas defesas do próprio doente. Investigadores temem que um reforço imunitário possa ser mais letal do que o vírus
O mundo está a depositar a esperança de pôr fim à pandemia em hipóteses que têm muito para falhar. A vacina ou os anticorpos contra o novo coronavírus são caminhos que começam a ter percalços, já que os investigadores estão a descobrir aspetos da infeção que podem tornar aqueles tratamentos mais letais do que o próprio vírus.
A doença é muito recente, tem quatro meses, e a ciência tem extrapolado para a covid-19 o que aprendeu com os anteriores coronavírus, da SARS ou da MERS. Mas a investigação está a mostrar que o novo vírus tem características mais engenhosas, que vão dificultar a descoberta de um tratamento profilático ou curativo.
“Os mecanismos dos vários coronavírus são parecidos, mas este tem truques que confundem a resposta imunitária. Bloqueia a produção de interferões (que impedem a proliferação vírica e protegem as células vizinhas), entrando nas células e expandindo-se à vontade. Além disso, ativa células da inflamação, que vão atacar o próprio hospedeiro”, explica Luís Delgado, professor associado de imunologia da Faculdade de Medicina do Porto. Por outras palavras, “nas formas mais graves é a própria resposta do sistema imunológico do doente que agrava a doença ou leva à morte”.
As vacinas visam reforçar a resposta imunológica do hospedeiro para um agente, pelo que, no caso do novo coronavírus, poderão aumentar o risco da autoagressão do sistema imunitário que tem sido identificada nas infeções graves e mortais. O receio, mais uma vez, inspira-se nos anteriores coronavírus. “Na SARS viu-se que algumas vacinas davam uma boa resposta imunitária mas acabavam por agravar a resposta imunitária em contacto com o vírus”, sublinha o imunologista. Ou seja, uma pessoa vacinada acabaria por ficar doente, com severidade, caso se cruzasse com alguém infetado.
“O que está a complicar e a demorar a descoberta de uma vacina — há cinco variantes possíveis e 100 hipóteses de a produzir — é a necessidade de comprovar que não poderá agravar a doença. Isto é, ter a certeza de que a vacina tem uma resposta protetora e não agressiva.”
A reação exagerada do sistema imunitário é conhecida como ‘tempestade de citocinas’ e pode acontecer com qualquer um. Até agora não foi identificado qualquer fator de risco para esta ‘histeria’ do sistema imunitário. “Não se sabe qual será a resposta imunológica de cada um, mas já há muitas linhas de investigação. Os recetores do vírus nas células são determinados por gene, por um polimorfismo que altera, neste caso exagerando, a resposta à infeção. Outra hipótese é a exposição a uma carga viral maior, por contacto direto com um doente e não pelo toque numa campainha, por exemplo”, adianta o investigador do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular (IPATIMUP) do Porto, Fernando Schmitt.
Resumindo, o melhor cenário é ter uma vacina segura no outono de 2021, e mesmo assim só para alguns. As doses serão dadas à vez, começando pelos profissionais de saúde, depois os grupos de riscos, doentes crónicos, crianças em idade escolar e assim sucessivamente até à restante população. “Os testes serológicos que vão ser feitos, entretanto, vão permitir saber que parte da população já teve contacto com o vírus e definir prioridades”, explica Kamal Mansinho, diretor do Serviço de Infecciologia do Hospital Egas Moniz, Lisboa.
“Quando foi da vacina da gripe, as doses chegaram a Portugal quando já estávamos no final da pandemia e agora corremos o mesmo risco”, alerta. “Estamos a assistir a um decréscimo paulatino e se a vacina chegar num período como este já não será necessária, apenas para vagas seguintes”, acrescenta o infecciologista.
E este é só um dos problemas com a distribuição da vacina. “A necessidade de produzir milhares de milhões de doses pode comprometer a produção de outras vacinas, como da gripe, sarampo, rubéola ou papeira, por exemplo. Também não se pode correr o risco de o país que descobrir a vacina decidir exportar só depois de proteger toda a sua população. Todos concordam que a distribuição deve ser equitativa, mas ainda não há nada escrito nem aceite pelos vários interlocutores sobre a forma de o fazer. A Coligação para a Inovação na Preparação contra Epidemias — criada em 2017 para acelerar o desenvolvimento de vacinas contra doenças infecciosas emergentes e torná-las acessíveis durante os surtos — está a tentar”, afirma Kamal Mansinho.
Supondo que tudo corre exemplarmente, não será possível, mesmo assim, descontrair. “Estarmos vacinados contra um agente, sobretudo respiratório como este, não valida abdicar das medidas de proteção, porque podemos contactar com alguém com uma carga [vírica] superior contra a qual a proteção é insuficiente”, acrescenta.
“A efetividade das vacinas difere conforme o vírus, por exemplo a vacina da gripe só dá proteção para seis meses a um ano”, reforça o investigador do IPATIMUP Fernando Schmitt. Ou seja, “pode pensar-se que a imunidade seja transitória, mas mesmo assim a vacina fará sentido para os doentes de risco, precisamente como a gripe”, afirma o imunologista Luís Delgado.
As dúvidas sobre a proteção estendem-se também aos anticorpos, sejam naturais ou fabricados (monoclonais). Os novos dados sobre a covid-19 estão a levantar muitas incógnitas. “Quantidades maiores de anticorpos foram encontradas em doentes graves, logo coloca-se a hipótese de os anticorpos não protegerem assim tanto. Alguns imunologistas até já dizem que ter muitos anticorpos não só não protege do vírus como potencia a entrada noutras células, virando o feitiço contra o feiticeiro”, revela Luís Delgado.
“Ter anticorpos não significa que se está protegido. Não se sabe se os anticorpos produzidos são eficazes contra o vírus porque não há uma relação direta entre a quantidade detetada no sangue e a percentagem presente de anticorpos neutralizantes, os que de facto neutralizam o vírus. E mesmo que existam e garantam proteção, também não se sabe quanto tempo dura essa imunidade”, acrescenta. É, no entanto, conhecido que após o contacto com um vírus, há resposta de anticorpos em oito dias (lgM) mas os anticorpos protetores (lgG), neutralizantes, só surgem três semanas depois.
Para o imunologista a esperança para conter em breve a pandemia está nos antivíricos, fármacos que impedem a replicação do vírus, encurtando e aligeirando a doença e impedindo a transmissão. Já existe um medicamento em utilização, o Remdesivir para o ébola, mas não é “absolutamente eficaz” e é injetável. “Está-se perto de encontrar um antivírico mais eficaz e não injetável. Alguns fármacos, no tubo de ensaio, cortaram a replicação vírica em 24 a 48 horas.”
Até à descoberta de um travão eficaz para o vírus é preciso moderação. Kamal Mansinho alerta: “O excesso de securitarismo leva a atitudes pouco racionais na relação com o outro. Neste momento, estamos a viver no limiar de uma fadiga de informação.”
Vera Lúcia Arreigoso, Jornal EXPRESSO, 9 de Maio de 2020