03/05/22

 

Por que não devemos desistir da Esperança

            por Jeremy Naydler

            (Publicado em Revista Antroposófica New View, Winter 2021-22)

 

 (Fig. 1)
A Esperança afastando as nuvens, de Henry Holiday (1884)

                                    (Fig. 1) 
A Esperança afastando as nuvens, de Henry Holiday (1884)

 

Para além dos nossos limites

Nunca devemos subestimar a Esperança. Sendo uma das três “virtudes teológicas” junto com a Fé e o Amor, é infundida com um poder espiritual que excede em muito o optimismo insípido que tantas vezes reivindica o seu nome. A verdadeira Esperança vive num nível muito mais profundo do que o optimismo ou o vago desejo de que as coisas possam dar certo. Isso estimula-nos a defender activamente os nossos valores e a procurar a causa com a qual estamos comprometidos. 

A Esperança dá-nos energia para defender os nossos ideais e permanecer leais ao que acreditamos profundamente, mesmo quando todas as probabilidades estão contra nós – especialmente quando todas as probabilidades estão contra nós.

 

De acordo com S. Tomás de Aquino, que é a grande fonte de discernimento das virtudes teológicas, “A Esperança denota um movimento ou uma extensão do desejo em direção a um bem que é difícil de alcançar”1.  A dificuldade de realização é intrínseca à Esperança, pois é a virtude a que recorremos quando as forças contra nós parecem avassaladoras e a nossa situação parece desesperada. A Esperança pede-nos para irmos além dos nossos limites, invocando poderes espirituais superiores a nós próprios para vir em nosso auxílio e ajudar-nos a fortalecer a nossa determinação. Essa extensão para além dos nossos limites é bem retratada num vitral projectado pelo pintor pré-rafaelita Henry Holiday, intitulado “Hope Parting the Clouds – A Esperança abrindo as nuvens”2. A Esperança é retratada alcançando as nuvens escuras e abrindo-as, sem esforço, para permitir que a luz do sol flua para o mundo (Fig. 1). 

 

 A Esperança nunca é passiva. Requer atividade interior da imaginação, através da qual criamos uma ponte entre nós mesmos e o Mundo Invisível dos anjos e espíritos auxiliares, para que possamos contar com seu apoio e orientação no meio da adversidade. No Jerusalém, de William Blake, é o personagem Los que representa tanto a imaginação criadora quanto a Esperança, porque “Ele mantem a Visão Divina em tempos de angústia”3. Para Los, a “perturbação” é tanto interna quanto externa, pois ele tem que lidar com seu próprio demónio de negatividade e desespero (que Blake chama de “espectro”), que constantemente ameaça paralisar todos os seus impulsos criativos. Na figura 2, vemo-lo a lutar com o espectro, que paira sobre a sua cabeça.

 

                                 (Fig. 2) Los enfrenta o seu espectro de negatividade e desespero5

 

Orientação em direcção ao mundo do espírito

S. Tomás de Aquino também via a manutenção da visão divina como essencial para a Esperança. A Esperança envolve voltar o coração para Deus e toda a ordem espiritual da existência. É por isso que S. Tomás de Aquino, sempre consequente no seu pensamento, declara que ceder ao desespero é na verdade um pecado, porque ao entregarmo-nos a ele afastamo-nos de Deus.4 A Esperança é uma virtude teológica porque abre o coração para energias edificantes que são originadas no divino. 

 

A Esperança dá-nos a confiança de que, se o nosso pensamento é verdadeiro e os nossos motivos estão certos, não importa se o que almejamos parece impossível de alcançar, então o mundo espiritual vem em nosso auxílio – e pode fazê-lo de forma imprevisível e modo misterioso. Por isso, devemos ter a coragem de continuar a questionar tanto o nosso pensamento quanto os nossos motivos, que o primeiro esteja livre de preconceitos e o segundo da influência corrosiva do medo. Isso requer que não aceitemos acriticamente o que nos é dito pelos espectros, sejam externos ou internos, mas levemos de volta à nossa consciência a responsabilidade pelos nossos pensamentos e acções. 

 

Este esforço para nos libertarmos das garras dos espectros é bem ilustrado na história da libertação de S. Pedro da prisão. Na figura 3, ele é conduzido por um anjo para fora do seu encarceramento enquanto os guardas estão a dormir (à direita). Os ‘guardas’ que o mantêm na prisão são os falsos pensamentos, o medo, a negatividade e o desespero que tantas vezes nos derrotam, colocando-nos numa prisão que nós mesmos criamos. Eles lançam-nos um feitiço, do qual é necessário que nos libertemos através do despertar para a realidade e o poder, sempre presentes, de uma forma mais elevada do Ser. Precisamente por meio do tal despertar interior, os ‘guardas’ são adormecidos e neutralizados e o anjo pode então libertar o prisioneiro das cadeias do seu auto-aprisionamento. 

 

                                                        (Fig. 3) S. Pedro é libertado da prisão6

 

Ao libertar-nos dos laços que nos prendem, a Esperança eleva-nos a uma relação mais consciente com a ordem espiritual da existência. Na Bhagavad Gitã, o deus Krishna assume o papel de mestre e guia da alma do guerreiro Arjuna, incutindo-lhe força e determinação justamente quando a sua coragem falha. Nesta história, Arjuna, em vez de ser preso como S. Pedro, encontra-se completamente derrotado “no campo de batalha”, e incapaz de lutar quando é obrigado a fazê-lo contra seus amigos e parentes. Arjuna solta o seu arco e flechas e, vencido pelo desespero, afunda-se na sua carruagem. Então Krishna profere estas palavras de encorajamento: 

 

“De onde vem esse desânimo sem vida, Arjuna, nesta hora, a hora da provação? Homens fortes não conhecem o desespero, Arjuna, pois isso não conquista nem o céu nem a terra. Não caias em fraqueza degradante, pois isso não te torna num homem que é um Homem. Livra-te desse desânimo ignóbil e levanta-te como uma chama que queima tudo diante dela.”7

  

A Esperança transforma o desespero na coragem ardente de que necessitamos para enfrentar as circunstâncias adversas com as quais temos que lidar. Tanto no caso de S. Pedro como de Arjuna, a Esperança implica a formação de um relacionamento com a alma-guia interior ou mestre espiritual. Pode-se igualmente chamar a essa figura interior o Eu Superior. Jung descreveu essa figura maior como o “imortal oculto” dentro do humano mortal. Ela habita dentro de nós como “aquela outra pessoa que também somos e, no entanto, nunca podemos alcançar completamente”8.

 

Conhecer este ser é experimentar um renascimento interior (Fig 4).

 

                                                            (Fig. 4) Krishna and Arjuna.9

 

A Esperança, então, envolve o nosso relacionamento com um poder autotranscendente que pode quebrar o feitiço da negatividade e do desespero que, de outra forma, nos prenderia e paralisaria. Nasce algo novo dentro de nós mesmos, uma nova energia derivada de termos reafirmado a nossa conexão inerente com o mundo do espírito. Esta é uma experiência, no entanto, que deve ser renovada uma e outra vez. Para que a Esperança crie raízes, devemos repetidamente fazer nascer dentro de nós o impulso espiritual que sentimos pertencer ao nosso propósito mais profundo.

 

Dando à luz a criança espiritual

Por isso, a imagem arquetípica da Esperança é a da mãe em trabalho de parto, dando à luz a criança espiritual. A Esperança é uma virtude que exige, daqueles que usam o seu poder fortalecedor, que trabalhem incessantemente para fazer nascer em si um novo nível de consciência. No Calendário da Alma, de Rudolf Steiner, a Esperança pertence aos meses de Inverno, porque é então que devemos gerar dentro de nós o nosso sol interior. No versículo para o Natal (versículo 38), é através do brilho interior do coração humano que “o fruto celestial da Esperança” é engendrado dentro de nós. Este fruto da Esperança é a “criança-espíritual no ventre da alma”:10

 

“Como se estivesse livre do encantamento

Eu sinto a criança espiritual no ventre da alma.

No brilho do coração

A sagrada Palavra cósmica gerou

O fruto celestial da Esperança,

E da base divina do meu ser

A sua alegria espalha-se pelos mundos mais distantes.”

 

Muitas vezes associadas à imagem da geração da criança espiritual estão as forças de oposição que se reúnem para impedir que a criança nasça. Na tradição cristã, o Apocalipse apresenta a figura da mãe celeste e do seu filho solar, ameaçados pelo terrível dragão de sete cabeças (Fig.5).11 Sempre que um novo impulso espiritual está para nascer, é muito provável que encontre a oposição mais feroz. Os poderes adversários podem ser invocados para tentar impedir que isso aconteça. Da mesma forma, quando os tempos são sombrios, difíceis e confusos, e sentimos que as forças contra nós são extremamente poderosas, podemos entender que se trata duma indicação de que um novo impulso espiritual está a tentar nascer.

 

(Fig. 5) O dragão de sete cabeças do Apocalipse, a mãe celestial e a criança espiritual.13


Esta imagem arquetípica do contexto interno da Esperança foi bem resumida pelo Patriarca Atenágoras I de Constantinopla nas seguintes palavras:

 

“O mundo agora está num momento em que todos os valores estão a ser colocados à prova. Descobertas científicas e tecnologia avançada, viagens espaciais, rápidas mudanças sociais, convulsões espirituais... criam uma confusão nunca antes conhecida. E, nessa confusão, muitas vezes somos tentados a desanimar. Mas não devemos ceder a essa tentação, nem por um instante, nem entregarmo-nos ao desespero. O estado do mundo é o do parto, e o parto é sempre acompanhado pela Esperança. Contemplamos a situação atual com imensa Esperança cristã e uma profunda consciência de nossa responsabilidade pelo tipo de mundo que emergirá deste parto”12.

 

O Patriarca Atenágoras poderia ter feito esta afirmação ontem, mas na verdade ele disse estas palavras em 1969. A imagem do nascimento do filho espiritual, intimamente ligada à Esperança, é uma imagem eterna, que nos transmite a necessidade de assumir, tanto o trabalho de trazer à luz, como o de proteger e nutrir o impulso espiritual que está a tentar vir a ser.

 

Portanto, nestes tempos atuais de angústia e escuridão invasoras, não devemos desistir da Esperança, nem por um momento permitirmo-nos ser coagidos ou intimidados em desespero ignóbil. Este é o momento de afirmar os nossos valores e propósitos internos mais profundos, e ter a confiança inabalável de que o mundo do espírito nos apoiará nas nossas resoluções.

 

Referências:
1. Thomas Aquinas, Summa Theologiae, 2a 2ae q.17 a.3 where ‘a good dif cult to achieve’ translates     bonum arduum.

2. St. Peter’s Church, Albany, New York.


3. William Blake, Jerusalem, Plate 95.


4. Thomas Aquinas, Summa Theologiae, 2a 2ae q.20 a.1.

5. op. cit. note 3, Plate 6.


6. Russian icon. 2nd half of 17th century. Yaroslavi Art Museum. The story is told in Acts, 12.


7. Bhagavad Gita, 2.2-3. Translated by Juan Mascaró (Harmondsworth: Penguin, 1962), p.48.


8. C. G. Jung, ‘Concerning Rebirth’, in Archetypes and the Collective Unconscious, Collected Works             9:1 (London: Routledge, 1991), §§217-18, 235.

9. Bhaktivedanta Book Trust, 1986.


10. Rudolf Steiner, Calendar of the Soul, Verse 38.

11. Book of Revelation, 12.


12. Quoted in Olivier Clément, On Human Being (London: New City, 2000), p. 107.


13. Cloisters Apocalypse, 14th Century ms. Metropolitan Museum of Art, New York.