Allen Frances (Nova York, 1942) dirigiu durante anos o
Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), documento que define e descreve
as diferentes doenças mentais. Esse manual, considerado a bíblia dos
psiquiatras, é revisado periodicamente para ser adaptado aos avanços do
conhecimento científico. Frances dirigiu a equipe que redigiu o DSM IV,
ao qual se seguiu uma quinta revisão que ampliou enormemente o número de
transtornos patológicos. Em seu livro Saving Normal (inédito no
Brasil), ele faz uma autocrítica e questiona o fato de a principal
referência acadêmica da psiquiatria contribuir para a crescente
medicalização da vida.
No livro, o senhor faz um mea culpa, mas é ainda mais duro com o trabalho de seus colegas do DSM V. Por quê?
Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM IV] dois dos 94
novos transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos,
convencidos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas o DSM IV acabou
sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e
diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de
introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao
poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem
que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O
resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano,
especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e
patologias no DSM V vai transformar a atual inflação diagnóstica em
hiperinflação.
Seremos todos considerados doentes mentais?
Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham
participado da última revisão e os vi tão entusiasmados que não pude
senão recorrer à ironia: vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu
disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos.
Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma
demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então
provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando
minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói,
devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um sistema de
diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em
transtornos mentais.
Com a colaboração da indústria farmacêutica...
Os laboratórios estão enganando o público, fazendo acreditar que os problemas se resolvem com comprimidos.
É óbvio. Graças àqueles que lhes permitiram fazer publicidade de seus
produtos, os laboratórios estão enganando o público, fazendo acreditar
que os problemas se resolvem com comprimidos. Mas não é assim. Os
fármacos são necessários e muito úteis em transtornos mentais severos e
persistentes, que provocam uma grande incapacidade. Mas não ajudam nos
problemas cotidianos, pelo contrário: o excesso de medicação causa mais
danos que benefícios. Não existe tratamento mágico contra o mal-estar.
O que propõe para frear essa tendência?
Controlar melhor a indústria e educar de novo os médicos e a
sociedade, que aceita de forma muito acrítica as facilidades oferecidas
para se medicar, o que está provocando além do mais a aparição de um
perigosíssimo mercado clandestino de fármacos psiquiátricos. Em meu
país, 30% dos estudantes universitários e 10% dos do ensino médio
compram fármacos no mercado ilegal. Há um tipo de narcótico que cria
muita dependência e pode dar lugar a casos de overdose e morte.
Atualmente, já há mais mortes por abuso de medicamentos do que por
consumo de drogas.
Em 2009, um estudo realizado na
Holanda concluiu que 34% das crianças entre 5 e 15 anos eram tratadas
por hiperatividade e déficit de atenção. É crível que uma em cada três
crianças seja hiperativa?
Claro que não. A incidência real está em torno de 2% a 3% da
população infantil e, entretanto, 11% das crianças nos EUA estão
diagnosticadas como tal e, no caso dos adolescentes homens, 20%, sendo
que metade é tratada com fármacos. Outro dado surpreendente: entre as
crianças em tratamento, mais de 10.000 têm menos de três anos! Isso é
algo selvagem, desumano. Os melhores especialistas, aqueles que
honestamente ajudaram a definir a patologia, estão horrorizados.
Perdeu-se o controle.
E há tanta síndrome de Asperger como indicam as estatísticas sobre tratamentos psiquiátricos?
Esse foi um dos dois novos transtornos que incorporamos no DSM IV, e
em pouco tempo o diagnóstico de autismo se triplicou. O mesmo ocorreu
com a hiperatividade. Calculamos que, com os novos critérios, os
diagnósticos aumentariam em 15%, mas houve uma mudança brusca a partir
de 1997, quando os laboratórios lançaram no mercado fármacos novos e
muito caros, e além disso puderam fazer publicidade. O diagnóstico se
multiplicou por 40.
A influência dos laboratórios é
evidente, mas um psiquiatra dificilmente prescreverá psicoestimulantes a
uma criança sem pais angustiados que corram para o seu consultório,
porque a professora disse que a criança não progride adequadamente, e
eles temem que ela perca oportunidades de competir na vida. Até que
ponto esses fatores culturais influenciam?
Os melhores especialistas, aqueles que honestamente ajudaram a definir a patologia, estão horrorizados. Perdeu-se o controle.
Sobre isto tenho três coisas a dizer. Primeiro, não há evidência em
longo prazo de que a medicação contribua para melhorar os resultados
escolares. Em curto prazo, pode acalmar a criança, inclusive ajudá-la a
se concentrar melhor em suas tarefas. Mas em longo prazo esses
benefícios não foram demonstrados. Segundo: estamos fazendo um
experimento em grande escala com essas crianças, porque não sabemos que
efeitos adversos esses fármacos podem ter com o passar do tempo. Assim
como não nos ocorre receitar testosterona a uma criança para que renda
mais no futebol, tampouco faz sentido tentar melhorar o rendimento
escolar com fármacos. Terceiro: temos de aceitar que há diferenças entre
as crianças e que nem todas cabem em um molde de normalidade que
tornamos cada vez mais estreito. É muito importante que os pais protejam
seus filhos, mas do excesso de medicação.
Na medicalização da vida, não influi também a cultura hedonista que busca o bem-estar a qualquer preço?
Os seres humanos são criaturas muito maleáveis. Sobrevivemos há
milhões de anos graças a essa capacidade de confrontar a adversidade e
nos sobrepor a ela. Agora mesmo, no Iraque ou na Síria, a vida pode ser
um inferno. E entretanto as pessoas lutam para sobreviver. Se vivermos
imersos em uma cultura que lança mão dos comprimidos diante de qualquer
problema, vai se reduzir a nossa capacidade de confrontar o estresse e
também a segurança em nós mesmos. Se esse comportamento se generalizar, a
sociedade inteira se debilitará frente à adversidade. Além disso,
quando tratamos um processo banal como se fosse uma enfermidade,
diminuímos a dignidade de quem verdadeiramente a sofre.
E ser rotulado como alguém que sofre um transtorno mental não tem consequências também?
Muitas, e de fato a cada semana recebo emails de pais cujos filhos
foram diagnosticados com um transtorno mental e estão desesperados por
causa do preconceito que esse rótulo acarreta. É muito fácil fazer um
diagnóstico errôneo, mas muito difícil reverter os danos que isso causa.
Tanto no social como pelos efeitos adversos que o tratamento pode ter.
Felizmente, está crescendo uma corrente crítica em relação a essas
práticas. O próximo passo é conscientizar as pessoas de que remédio
demais faz mal para a saúde.
Não vai ser fácil…
Certo, mas a mudança cultural é possível. Temos um exemplo magnífico:
há 25 anos, nos EUA, 65% da população fumava. Agora, são menos de 20%. É
um dos maiores avanços em saúde da história recente, e foi conseguido
por uma mudança cultural. As fábricas de cigarro gastavam enormes somas
de dinheiro para desinformar. O mesmo que ocorre agora com certos
medicamentos psiquiátricos. Custou muito deslanchar as evidências
científicas sobre o tabaco, mas, quando se conseguiu, a mudança foi
muito rápida.
Nos últimos anos as autoridades
sanitárias tomaram medidas para reduzir a pressão dos laboratórios sobre
os médicos. Mas agora se deram conta de que podem influenciar o médico
gerando demandas nos pacientes.
Há estudos que demonstram que, quando um paciente pede um
medicamento, há 20 vezes mais possibilidades de ele ser prescrito do que
se a decisão coubesse apenas ao médico. Na Austrália, alguns
laboratórios exigiam pessoas de muito boa aparência para o cargo de
visitador médico, porque haviam comprovado que gente bonita entrava com
mais facilidade nos consultórios. A esse ponto chegamos. Agora temos de
trabalhar para obter uma mudança de atitude nas pessoas.
Em que sentido?
Que em vez de ir ao médico em busca da pílula mágica para algo
tenhamos uma atitude mais precavida. Que o normal seja que o paciente
interrogue o médico cada vez que este receita algo. Perguntar por que
prescreve, que benefícios traz, que efeitos adversos causará, se há
outras alternativas. Se o paciente mostrar uma atitude resistente, é
mais provável que os fármacos receitados a ele sejam justificados.
E também será preciso mudar hábitos.
Sim, e deixe-me lhe dizer um problema que observei. É preciso mudar
os hábitos de sono! Vocês sofrem com uma grave falta de sono, e isso
provoca ansiedade e irritabilidade. Jantar às 22h e ir dormir à
meia-noite ou à 1h fazia sentido quando vocês faziam a sesta. O cérebro
elimina toxinas à noite. Quem dorme pouco tem problemas, tanto físicos
como psíquicos.