13/11/18

Para ler e reflectir: 


Reflexões sobre migrações globais modernas
por Harrie Salman, Holanda

Milhões de pessoas estão em movimento - como refugiados de guerra, vítimas de perseguições religiosas ou de alterações climáticas, mas também de condições políticas e económicas catastróficas. As leis de asilo existentes, particularmente nos países ocidentais, foram feitas para indivíduos que são perseguidos devido às suas crenças ou à sua raça. Hoje os refugiados procuram asilo por outras razões. Eles precisam de um lugar onde a sua existência não seja ameaçada pela guerra e pela pobreza. A maioria deles vê os países ocidentais como um refúgio seguro. Os problemas causados pelas migrações globais só podem ser resolvidos quando levamos a questão subjacente a sério: podemos tornar o mundo num refúgio seguro para todos?
 
Causas da migração global
A chegada de refugiados a países da Europa e da América do Norte pode muitas vezes ser reconhecida como uma consequência de ações passadas e presentes de alguns desses mesmo países. Nesse sentido, é "nosso" karma - o resultado dos "nossos" próprios atos. As potências coloniais da Europa, historicamente, criaram estados instáveis ao traçarem fronteiras noutros continentes, não ao longo de linhas étnicas, mas de acordo com esferas de influência. Por exemplo, as tribos africanas que nunca antes viveram juntas agora fazem parte de estados nos quais as tribos mais poderosas dominam as outras tribos. Os seus governos são notoriamente corruptos e as potências ocidentais permitiram que os seus líderes transferissem o dinheiro roubado para bancos ocidentais, por intermédio de todo o tipo de expedientes comerciais e políticos.
Na ordem mundial moderna, as empresas ocidentais e chinesas tomaram posse dos melhores solos agrícolas de África, onde as plantações são cultivadas para exportação, em vez de fornecerem alimento suficiente para a população local. O controle sobre os recursos minerais é sempre a causa de guerras civis em que grupos de interesses estrangeiros apoiam os líderes africanos seus favoritos. No caso do petróleo, vimos intervenções norte-americanas diretas no Médio Oriente para proteger os interesses anglo-americanos. Eles alegaram ser guerras ao terror, mas na verdade provocaram o terrorismo e uma chegada massiva de refugiados à Europa. Além disso, as alterações climáticas são, em parte, o resultado do modelo económico ocidental de desenvolvimento. A seca e a desertificação forçaram os agricultores a abandonarem as terras e a mudarem-se para as cidades, como aconteceu na Síria, antes da guerra civil começar. Muitos jovens africanos não viam qualquer futuro nos seus países quentes e secos e tentaram fugir para a Europa.

Escala dos problemas
Nem todos os países do mundo ocidental são diretamente responsáveis por grande parte da desordem no mundo, mas parecem suportar uma culpa coletiva. Juntos, eles criaram e apoiaram os estados fracassados do mundo moderno. Do mundo ocidental também veio a introdução da medicina moderna, que resultou num crescimento populacional sem precedentes em muitas partes do mundo. Espera-se que o número de pessoas na África subsaariana cresça de 1,1 bilião de pessoas em 2013 para 2,4 biliões em 2050, e espera-se que o Médio Oriente abrigue 1 bilião de pessoas até 2050. Os governos desses países não são capazes de criar as condições sociais e económicas para que suas populações crescentes sobrevivam. Nessas partes do mundo, a única garantia que muitos pais podem ter para a sua velhice é ter um grande número de filhos.
Os problemas do mundo moderno não podem ser resolvidos pela rápida migração para a Europa de incontáveis milhares, milhões de pessoas que não conseguem ver qualquer futuro nos seus próprios países. Isso levaria ao colapso cultural, político e económico da Europa Ocidental. É óbvio que os refugiados e os migrantes económicos não querem ir para a Europa de Leste, cujos países não são suficientemente amigáveis para cuidar deles e cujos cidadãos são hostis aos imigrantes. Mas também na Europa Ocidental os sentimentos negativos em relação aos imigrantes estão a aumentar.

Motivos espirituais por trás das migrações para a Europa
A migração também pode ser o resultado de aspectos espirituais mais profundos, traduzindo um impulso inconsciente para chegar à Europa, o berço da consciência individual. Talvez as pessoas sejam atraídas para a Europa porque querem deixar o mundo de clãs e tribos, sem liberdade, que ainda predomina fora da Europa. Podemos imaginar que os indivíduos queiram viver na Europa para experimentar a sua atmosfera libertadora. Em vez de ver apenas massas de migrantes a entrar na Europa, poderíamos, ao contrário, sustentar a possibilidade de que os destinos individuais de tais pessoas os levassem a procurar um lugar para se tornarem indivíduos livres?
Alguns anos atrás, havia uma história nas notícias de uma mulher inglesa que havia abortado uma criança. Mais tarde, porque ela não conseguia engravidar e estava num novo relacionamento, ela adoptou uma
criança do Vietname, que contou à sua nova mãe, assim que aprendeu a falar inglês: “Mãe, eu já estava contigo, mas tive que sair”. Talvez a história revele que há indivíduos que querem nascer na Europa, mas para os quais não existem corpos disponíveis devido ao aborto e ao declínio do número de gravidezes nas famílias modernas. Muitas pessoas pensam que o lugar onde nascemos e as pessoas que encontramos na vida não são acidentais, mas pertencem a um plano mais amplo, no qual a nossa alma procura realizar a sua tarefa de vida. Se a Europa deveria ser o lugar do seu destino, há um problema para muitas almas impedidas de nascerem nesse contexto, que têm que encontrar outro meio de chegar à Europa, talvez como refugiados ou migrantes. Isso certamente cria encargos adicionais para eles, porque foram educados em culturas que negam o direito de ser um indivíduo livre. Outros indivíduos estão sendo adotados para se tornarem europeus.

O espírito de Cristo
Na Europa, as pessoas de outras religiões podem experimentar como algo do espírito de amor que Cristo trouxe ao mundo se tornou institucionalizado. A maioria dos estados europeus tem um grau de cuidado com a sua população e com os imigrantes. Os refugiados muçulmanos sabem muito bem que não devem procurar outro país muçulmano, mas sim um país com raízes profundas no cristianismo. Eles ficam muitas vezes surpreendidos com o apoio que recebem na Europa e com o facto de os europeus serem tão prestáveis para com os estranhos já que, na sua região, provavelmente receberiam apenas ajuda de agências da ONU. Na Europa eles podem (ainda) encontrar o espírito do cristianismo, apesar de ser, às vezes, um eco precário nestes tempos mais seculares do mundo ocidental.
Essa experiência pode ter dois lados. Por um lado, os imigrantes têm a oportunidade de se abrir para o espírito de individualização da cultura ocidental. E os ocidentais, por outro lado, que vivem num mundo privado de crescente individualismo e isolamento social, podem aprender com o espírito de comunidade que frequentemente está presente nos grupos de imigrantes. A presença de pessoas de uma cultura não-ocidental pode, de facto, ser uma força contrabalanceadora de uma cultura ocidental de tecnologia e comunicação virtual e impessoal. Devemos reconhecer que toda a cultura tem as suas próprias virtudes e devemos estar abertos para conhecer pessoas de outras culturas. No entanto, quando o número de imigrantes se torna muito grande, e cresce muito rapidamente, a formação e localização de guetos impede a sua integração mais gradual na sociedade ocidental, esse processo de aprendizagem intercultural não ocorre. Nas principais cidades da Europa Ocidental, já vemos sinais de crescente desintegração social, até com tumultos vários, carros incendiados em alguns países.

Uma nova visão da globalização
De acordo com Rudolf Steiner, desde 1879 que vivemos numa época que é guiada por um ser espiritual com inspirações cosmopolitas. Steiner nomeia esse ser como o arcanjo Miguel. Nesta era, cada vez mais nos apercebemos que não podemos continuar a viver dentro e por trás de estruturas fechadas e fronteiras do Estado-nação. Através da globalização, o mundo está a tornar-se uma economia única e as nossas sociedades estão a tornar-se multiculturais. A atual forma de globalização é, no entanto, uma luta pela sobrevivência dos mais capazes e as vítimas dessa luta tornam-se refugiados e migrantes económicos. É uma forma que destrói a coesão social em todos os lugares. Na Europa, as migrações em massa concomitantes causam descontentamento generalizado e muitos europeus sentem-se ameaçados na sua identidade nacional. Isso leva a apoiar políticos populistas e nacionalistas que defendem um retorno à maneira como as coisas eram antes que as ondas de imigrantes começassem a chegar.
Para superar essas tendências negativas, precisamos de uma forma diferente de globalização, na qual começamos a servir os interesses da humanidade e do planeta como um todo e não as necessidades aquisitivas de algumas pessoas poderosas e privilegiadas. Isso requer uma consciência diferente - informada por um novo sentimento de pertencer à família da humanidade e uma responsabilidade comum por todos os filhos da Mãe Terra. Todos eles precisam de condições decentes para a sua existência.
A migração global descontrolada de refugiados e trabalhadores é apenas um dos problemas do mundo moderno. Não devemos esperar que os políticos e os grupos de interesses por trás deles resolvam esses problemas. Outra abordagem é necessária. Os indivíduos parecem ser impotentes, mas o primeiro passo que pode ser dado é entender as causas dos problemas e ver como o nosso modo de vida faz parte do problema. Outro passo é olhar para os destinos de indivíduos, refugiados ou trabalhadores migrantes, e imaginar um mundo em que eles também teriam uma vida decente nos seus próprios países. Num terceiro passo, podemo-nos perguntar como podemos contribuir para esse novo mundo, tanto do ponto de vista moral quanto prático. Mudanças rápidas não podem ser esperadas, mas também sabemos que o tempo urge.

 (artigo publicado na Revista New View, Autumn 2018)